sábado, 18 de outubro de 2014

Conto #0008

OITAVO PÁSSARO

ADÉLIA*


Uma colega de escola que conheci que achava que nunca mais a veria, acabei vendo ela outra vez. Uma última vez. Morta. E que visitaria alguns dos meus sonhos por duas vezes naqueles meses seguintes.
A notícia tinha sido dada por uma professora de inglês. Nós estávamos agora na oitava série.
Eu me lembro de algumas coisas da quarta, quinta, sexta e sétima séries.
Ela tinha mudado de casa outra vez. Antes de se mudar de escola ela morava perto da minha casa a umas duas quadras. Isso foi a partir da sexta série. Antes ela morava numa rua perto da nossa escola.
Tive muitas boas lembranças com ela. Ela adorava animais. Tinha duas gatas e uma cachorra. Já não lembro mais o nome delas. Também não lembro o nome da mãe e nem das duas irmãs mais velhas dela. Nem lembro direito se havia apenas só duas irmãs, mas ela falava de um padrasto e irmãos por parte de pai. Também não me recordo mais o que ela queria ser quando crescesse. Quais seriam seus planos para o futuro. Eu não lembro disso direito, só lembro que as notas dela não eram boas e que ela tinha que frequentar as aulas de reforço.

O que eu lembro dela, era que ela era uma pessoa radiante. Tinha muita energia, muita alegria. Ela era alguém esforçada e que frequentava as aulas de reforço sem reclamar, parecia que gostava muito da vida que levava, apesar de todas as dificuldades. Ela não era uma pessoa pobre, miserável, mas não podia ter luxos. Seu material escolar era humilde. Se ela achava um lápis por aí, ela pegava para ela e ainda falava “olha que sorte, está quase inteiro”.
Lembro dela dizer que ser filha caçula não era algo muito bom, pois ela teria que cuidar de sua mãe depois. Na época eu não entendia o porquê de ter que cuidar da mãe depois. E os outros filhos? Iriam se casar e ter a própria família. A caçula seria a última a se casar pela ordem cronológica... Mas não foi o que aconteceu. Ela nunca chegaria a se casar, mal chegaria a namorar alguém seriamente.
“Que cruel levarem um filho antes da hora... Naturalmente, era para os pais serem levados primeiros.”
Foi mais ou menos o que aquela professora de inglês comentou. Ela ficou muito comovida com aquele acontecimento.
Uma menina de outra classe chorou:
“Coitadinha.”
Eu não entendia. Fazia algum tempo que eu não a via.
“Vamos fazer uma última homenagem a ela!”
Foi o que um colega de classe falou. Na voz dele, eu achei uma frase sem empatia. Como posso explicar? Aquelas coisas que se diz, mas no fundo não tem sentimentos. Expressa algo um tanto alegre e espontâneo. Porém, o momento não era para assim.
Eu me senti estranho.
Contei o fato para a minha mãe. Pensei que ela não ia se importar tanto. Ela ficou meio abalada com a notícia, mas me levou de carro para o velório e ainda deu carona para mais uma colega da minha classe e a mãe dela. Conversaram coisas durante o caminho.
Eu tinha pego uma flor para colocar no caixão dela. Não deveria ter feito aquilo. Eu parecia a pessoa mais estúpida do mundo. Além de estar com uma flor, era o único vestindo o uniforme da minha escola. Eu me sentia um estúpido. Havia muitas pessoas. Não sabia exatamente se havia mais um velório acontecendo naquele local, mas parecia que havia. Todos os dias, mais de uma pessoa morre.
A mãe da falecida estava chorando inconsolavelmente perto do caixão. Foi naquele momento que me senti a pessoa mais estúpida do mundo e que percebi como os meus atos eram estupidamente impensados. O sofrimento dela era algo sagrado. Eu estava sujando aquilo porque não tinha entendido aquilo antes de vir.
Era aquilo. Eu tinha pensado naquilo como uma coisa trivial. A morte dela.
Se me lembro, aquelas eram as irmãs dela. Elas estavam tentando consolar a mãe, só que ela não parava de chorar e dizer coisas. Não ouvi e não lembro o que ela estava dizendo, só sei que ela não aguentava ter perdido a filha dela para a morte.
Não sei exatamente do que foi que ela morreu. Parece que foi de repente. Uma doença. Virose talvez. Ela estava passando mal. No dia seguinte já foi encontrada morta no quarto.
Eu me aproximei do caixão e vi seu rosto de relance. Estava com uma expressão serena.
Queria ir embora logo dali. Os choros e lamentos daquela mãe estavam sendo insuportáveis.
Eu estava me sentindo mal. Muito mal.
Na volta para casa, continuaram conversando sobre coisas. Parecia que estava tudo normal. Uma pessoa tinha morrido. Estava tudo normal.
Nos dias que se seguiram, em meus sonhos, eu me encontrei com ela. Ela estava morando numa casa perto do cemitério. Ela tinha me contado que iria morar ali antes. A casa era cinza e estava pichada.
Eu acordei. Parecia que tinha sido verdade. Ela ainda estava viva.
Ela ainda estava viva? Será que ela ainda estava viva?!
Eu fiquei com uma sensação horrível. E se tivessem enterrado ela viva?! O que eu faria? Contaria para alguém? E se ela estivesse viva?!
Ela já teria morrido sem ar.
Eu não contei aquilo para ninguém.
No outro sonho ela me contou que estava feliz e se dando bem nessa nova escola. Como ela morava perto do cemitério havia alguns desafios para se entrar lá à noite. Era o passatempo do pessoal dali. Eu fui com eles. Segui para dentro do cemitério. Nós estávamos pulando o muro. O muro era um tanto alto, não sei como consegui pular para dentro.
Todos aqueles túmulos. Cruzes, estátuas de Nossa Senhora, Jesus Cristo, anjos, lápides... Tudo cinza e branco. Eu já tinha ido naquele lugar antes. Eu tinha visitado os pais do meu pai, mas não era aquele cemitério.
Eu estava sozinho naquele lugar. Ninguém estava mais lá, apenas os mortos.
Eu acordei chorando.
- Onde você está...?

ADÉLIA*
OITAVO PÁSSARO
FIM

PÁSSAROS RESTANTES: 0992

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