sábado, 15 de novembro de 2014

Conto #0010

DÉCIMO PÁSSARO
BERNARDINO

Na casa dos parentes de minha mãe eu não me sentia nada confortável. Era apenas um bando de estranhos que eu via uma vez ao ano. Quando eu ainda não sabia que ela não era minha mãe biológica, nós passávamos os natais na casa de sua irmã mais velha, minha tia.
O filho dela, meu primo, costumava passar o fim da tarde no telhado da casa.
- Você é chato. Suba aqui.
- Minha mãe vai brigar comigo.
- Está com medo?
- Não quero que minha mãe brigue comigo.
- Seu mariquinha!

Eu realmente ficava com medo de subir. Eu tinha medo de altura e tinha medo da minha tia, ela parecia não gostar de mim, nem de mim e nem da minha mãe.
A casa dela parecia uma casa de ricos, como os que passavam nas novelas, mobílias que combinavam e com muitos enfeites interessantes que não podiam ser tocados, pois aparentavam ser caros, esculturas cheias de detalhes.
Meu primo era mais velho do que eu, uns cinco anos. Eu o admirava, ou o invejava, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Eu queria ter a vida dele. Aquela casa tinha coisas muito legais. A vida dele parecia muito legal. E a atitude que ele tinha quanto a não ligar para o que os outros pensavam era muito legal. Eu queria ser daquele jeito. Subir sem pensar que você poderia cair durante a escalada.
Ele subia no telhado para olhar o mundo.
“Se você não se arriscar, nunca poderá apreciar as belezas desse mundo.”
Eu me lembrei de uma das frases que meu suposto pai me disse.
E com dez anos eu subi.
- Finalmente. Olha! Estão jogando lá da rua.
Lá de cima dava para ver uma praça onde tinha uma quadra de areia.
- Parece ser divertido.
- Dá para ver o quintal dos vizinhos também.
Eu olhei. Eles tinham uma piscina.
- Você conheceu o seu pai?
- Sim. Ele mora no meio do mato.
- No meio do mato?
- Tem uma casa no meio da floresta.
- No meio da floresta? O que ele é? Lenhador?
- Ele é... voador.
- Voador?
- Sim. Ele voa.
- Piloto?
- De asa delta.
- Asa delta? Ele ganha com isso?
- Não sei. Mas eu voei com ele.
- De asa delta?
- Sim.
- Da hora.
Eu senti um certo orgulho naquele momento.
Havia outros primos na casa, mas ele era o que se isolava.
Amanda. Cássio. Robervaldo. Elen.
- Vai brincar com eles querido – minha mãe falou.
Brincar?
- O que tem de legal para fazer? – perguntaram.
Assistir TV?
- Temos uns jogos aqui. – disse Robervaldo, o filho mais velho da minha tia.
Vídeo game. Jogos de luta. Eu perdia. Jogos de fase. Eu perdia.
Aqueles risos me deixavam tonto. Eu queria sair dali e quando pensei nisso tinha alguém saindo do quarto. Eu segui aquela pessoa.
- O que é? – ele se virou para mim.
- Nada.
Ele continuou a andar. Saiu pelos fundos da casa. Pegou uma escada e colocou inclinado para a parede. Ele subiu. Eu fiquei ali embaixo parado olhando ele subir e desaparecer para cima do telhado da casa. Eu comecei a subir a escada, mas não consegui subir no telhado. Ele esticou o pescoço e me viu ali, empacado na escada.
- Você é chato. Suba aqui.
Ele esticou o braço para me pegar. Eu já não queria subir mais. Eu estava com medo.
- Minha mãe vai brigar comigo.
Desci um degrau.
- Está com medo?
Desci mais um degrau.
- Não quero que minha mãe brigue comigo.
Já não olhava mais para ele. Seria uma mentira aquilo que eu disse.
- Seu mariquinha!
Eu desci toda a escada e me encolhi ali. Sentei segurando as minhas pernas. Escondi meu rosto e comecei a chorar. Eu comecei a me sentir muito mal. Eu senti uma mão sobre minha cabeça.
- Ei.
Era ele. Estava sentado ao meu lado.
- O que aconteceu?
Ele estava preocupado?
- Eu quero ir embora. Não quero mais ficar aqui.
- Eu também.
Eu olhei para ele.
- Mas aqui não é a sua casa?
- E daí? Aqui é chato.
- Lá no telhado é melhor?
- Lá é legal. É outro lugar.
- Por quê?
- Dá para ver o mundo.
- Ver o mundo?
- Um pouco do mundo.
Ficamos ali sentados em silêncio por um tempo.
Naquela casa, a única pessoa com quem eu queria conversar era ele. No ano seguinte, eu consegui subir no telhado com ele e falei do meu pai. Vimos o pôr-do-sol e depois descemos para a ceia.
No outro ano conversei mais e ele menos. Isso foi estranho.
- Meu pai fuma. Eu não gosto do cheiro de cigarro.
- É?
E no outro ano foi mais estranho.
Ele ficou em pé no telhado e olhou fixamente para o quintal do vizinho.
- Vou pular daqui.
- O quê?
Ele colocou o dedo indicador perto dos lábios fazendo sinal para eu ficar em silêncio.
- Veja só.
Ele tomou impulso, correu e saltou. Ele caiu no quintal do vizinho.
Eu parei de respirar. Meu coração disparou. Eu achei ter visto sangue. Não lembro direito o que aconteceu em seguida, se eu gritei na hora ou se gritei depois que desci do telhado, ou se eu não gritei.
Ele não morreu, por sorte, disseram.
No ano seguinte, nós não subimos no telhado. Não teve festa de Natal naquele ano. Acho que não teria mais festa de Natal naquela casa por um bom tempo. Talvez nunca mais fosse ter festa de Natal.
- Mãe, eu posso visitá-lo?
- Vou perguntar pra sua tia.
Minha tia me amaldiçoou, me acusou de ter empurrado o filho dela. Ela passou a me odiar profundamente.
Consegui vê-lo naquele Natal dos meus catorze anos.
- Foi quase.
Ele sorriu.
- Eu ainda não possuo asas para voar.
Eu disse para ele.
- Eu preciso do seu nome.

BERNARDINO
DÉCIMO PÁSSARO
FIM


PÁSSAROS RESTANTES: 0990

Nenhum comentário:

Postar um comentário